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Alforria

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Carta de alforria em exposição no Museu Histórico Nacional

Alforria (do árabe الحرية, al-ḥurrííâ) ou manumissão é o ato pelo qual um proprietário de escravos liberta os seus próprios escravos.[1] Esta libertação assume diferentes formas consoante o tempo e o local da sociedade escravagista. A primeira palavra para "liberdade" vem do sumério Ama-gi, que corresponde à alforria da escravidão por dívida.[2][3] No Brasil, alforriava-se como em nenhum outro lugar. A alforria se torna, portanto, um problema à historiografia brasileira, pois um escravo alforriado, fujão ou morto é igualmente para o sistema um escravo a menos.[4]

Do árabe الحرية al-ḥurrííâ, que significa "afastamento de falhas, escravidão, ou maldade; estado de homem livre, não escravo; liberdade".[5] A palavra "alforria" tem origem no árabe al-furriâ,[6] que significa "liberdade". "Manumissão" provém do termo latino manumissione.[7]

Carta de alforria

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A carta de alforria era um documento através do qual o proprietário de um escravo rescindia dos seus direitos de propriedade sobre o mesmo. O escravo liberto por esse dispositivo era habitualmente chamado de negro forro.

  • Segue abaixo a transcrição de uma carta de alforria (mantida a ortografia original):
[fol.77]

Digo eu Manoel de Souza Magalhães que entre os bens livres e desembargados de que sou legítimo senhor e possuidor, é uma escrava mestiça de nome Joanna filha de minha escrava Helena criola, que agoconta alias tem de idade treze annos, a qual escrava Joanna, deve acompanhar-me atte o dia em que eu a cazar ou fallecer, e sendo que a mesma descre [?] e tenha filhos, tanto ella como seus filhos gozarão da mesma liberdade, cuja liberdade é do dia de minha morte por diante como si de ventre livre nascesse; e não

[fol.78]

não poderão meus herdeiros prezentes e esta liberda de que a faço de minha livre vontade sem constrangimento algum, e sim pelo muito amor que lhe tenho pela ter creado como filha, e alem disso me ter servido completamente; e havendo duvida sobre o ponderado recebo a dita escra va em minha terça pela quantia de cento e vinte mil reis, e declaro que presentemente o posso fazer por possuir bens aundantes que bem chegão para esta liberdade: e para título mandei passar a presente que pedi ao Senhor Jose Thomaz de Aquino [...][8]

O sentido de liberdade

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A noção de liberdade se confundia com a ideia de dispor de si. O direito de propriedade do senhor em relação ao seu escravo passava para este - processo que culmina em uma maior autonomia do cativo. Todavia, devido ao estatuto jurídico de reescravização, que perdurara até 1871, o escravo poderia ter sua liberdade revogada. O domínio do senhor, antes real, tornava-se virtual.

Essa cultura da manumissão demarca a inferioridade intrínseca do negro, até quando liberto. A liberdade concedida pela manumissão, devido seu caráter movediço - mesmo que raríssimas fossem as revogações das promessas de alforria -, estabelece novos mecanismos de produção de patronagem. Reiterando, assim, o status quo escravista.[9]

Alforria e leniência

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Frank Tannenbaum

O historiador Frank Tannenbaum fez uma associação entre o alto grau de alforrias no Brasil com uma subsequente leniência (suavidade) desta sociedade escravista em relação à sociedade dos Estados Unidos.[10] O debate suscitado pelo historiador austro-americano, o qual efetua um juízo valorativo sobre os modelos escravistas, fraqueja desde sua origem.

Como afirma o historiador Moses Finley, uma sociedade escravista é aquela na qual o escravo possui a função sociológica de produção de diferença entre os livres. Não é suficiente a uma sociedade que ela possua escravos para ser considerada escravista. O modelo escravista está intrinsecamente associado a uma estrutura hierárquica, a qual é afirmada pela constante reiteração de poder. O escravo é, portanto, um signo de distinção social.[11]

A biografia de Mahommah G. Baquaqua

Assim, a consideração de uma sociedade escravista como leniente ou cruel desloca o debate em torno dos próprios fundamentos desse modelo societário. Entre escravo e liberto, há incontáveis dissimilitudes. O depoimento de Mahommah Gardo Baquaqua exemplifica isso:

"Depois de algumas semanas, ele me despachou de navio para o Rio de Janeiro, onde permaneci duas semanas até ser vendido novamente. Havia lá um homem de cor que queria me comprar mas, por uma ou outra raz�o, n�o fechou o neg�cio. Menciono esse fato apenas para ilustrar que a posse de escravos se origina no poder, e qualquer um que disp�e dos meios para comprar seu semelhante com o vil metal pode se tornar um senhor de escravos, n�o importa qual seja sua cor, seu credo, ou sua nacionalidade; e que o homem negro escravizaria seu semelhante t�o prontamente quanto o homem branco, tivesse ele o poder."[12]

A tese de Tannenbaum elide, consequentemente, a fun��o da alforria como um elemento fundamental da reprodu��o do status quo.

Caminhos da alforria

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Carta de liberdade ao escravo Geraldo com a condi��o de trabalhar por mais 6 anos. APESP
Jean-Baptiste Debret- "Negra tatuada vendendo cajus". Exemplifica��o de um "negro de ganho"

Havia tr�s modos de obten��o da alforria: gratuitamente, mediante a servi�os ou por meio de pagamentos.

Por vezes, a alforria era concedida sem ensejar nada em troca do escravo. Dentre as diversas categorias de escravos existentes, os que mais obtinham vantagem diante deste modelo de alforria eram os escravos dom�sticos. Estes eram mais �ntimos de seus senhores, trabalhavam junto a eles e, portanto, eram mais suscet�veis a serem agraciados por uma carta de alforria.[13] Os africanos do eixo Congo-Angola eram os que mais aquinhoados a obter este tipo de alforria.[14]

A maioria que recebia esse tipo de carta passava a trabalhar na casa do antigo dono, possuindo um sal�rio e hor�rios definidos de trabalho.

Diversos casos de alforrias concedidas pelos senhores exigiam, em troca, anos de servi�o do escravo. Este s� seria de fato libertado quando o servi�o exigido fosse cumprido, havendo a possibilidade de se revogar a promessa. Era um tipo de alforria dominado pela categoria dos crioulos.[15]

Se demonstrou o caso mais incomum de alforria ao longo do s�culo XIX.[16] O escravo deveria pagar o pr�prio valor para ser libertado. Assim, os denominados "negros de ganho" - isto �, os escravos que exerciam sua ocupa��o fora de casa, por meio de vendas por exemplo - possu�am vantagens em rela��o aos demais escravos, por conta de uma maior capacidade de acumular pec�lio.[17] Havia tamb�m os "escravos do eito", os quais trabalhavam para o pr�prio sustento. A produ��o, caso gerasse excedentes, poderia ser comercializada pelos escravos nos mercados, permitindo a eles acumular pec�lio para a compra da alforria.[18] Por esta via, desnuda-se a rela��o senhor e escravo - de mando e obedi�ncia - para vendedor e comprador.[9] O pagamento poderia ser �nico ou por meio da coarta��o - isto �, pago em presta��es. Nessa categoria, os afro-ocidentais possu�am o maior n�mero de manumiss�es.[14]

Economia e alforria

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As taxas de manumiss�es variam de acordo com as Fases A (de crescimento econ�mico) e B (de recess�o econ�mica).

Alberto Henschel - Negra vendedora

Em per�odos de crescimento econ�mico, a tend�ncia � alforriar-se menos. Por conta do aumento da demanda por m�o de obra, al�m da incorpora��o de mais escravos, se incorre a uma baliza na perda destes com menos liberta��es.

Em per�odos de recess�o econ�mica, h� uma tend�ncia para maiores taxas de alforrias, por dois motivos: evitar custos de manuten��o de um escravo, ou reaver - em parte ou por completo - o pre�o dos cativos em um momento de menor demanda por m�o de obra.[9]

Vari�veis para as alforrias

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A respeito das dissimilitudes entre as "pessoas livres de cor", h� uma variedade de divis�es a serem observadas. Estas formam vari�veis para pensar nas categorias que possu�am vantagens diante das outras para a obten��o da alforria.

Meio urbano e rural

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Havia mais alforrias nas zonas urbanas do que nas rurais. Nas pr�prias zonas rurais, contudo, havia diferen�as entre as regi�es de grande lavoura e as de agricultura mais diversificada. As taxas de alforria eram menores quanto maior a quantidade de escravos.[19]

A cor podia ser parda ou negra, com diversas grada��es intermedi�rias (fula, cabra, mulato etc.). Os pardos possu�am um n�mero de alforrias francamente maior do que os negros. A l�gica seria a de um maior n�vel de acultura��o - isto �, maior capacidade de integra��o com a cultura predominante - dos pardos, resultando em vantagens para angariar sua alforria.[20]

Entre homens e mulheres, se beneficiavam mais mulheres - possivelmente por um maior n�vel de acultura��o.[21]

O escravo podia ser Africano - com subdivis�es �tnicas como Congo, Angola, Mina, Monjolo etc. - ou Crioulo (isto �, nascido no Brasil). Os Crioulos, neste caso, s�o os que obt�m um maior n�mero de alforrias.[22] O argumento de um maior n�vel de acultura��o aplica-se. Entre as d�cadas de 1840-60, contudo, o n�mero de Africanos alforriados ultrapassa o n�vel de crioulos.[23] O n�vel de acultura��o, portanto, n�o serve de explica��o �nica para o desempenho vantajoso de um grupo diante do outro. Essa quebra nos padr�es de alforria deixam um debate historiogr�fico em aberto. Um caminho a seguir � mediante a forma��o de redes de solidariedade entre os escravos, ou deste com um benfeitor - �s vezes at� com o pr�prio senhor.

H� uma divis�o em 3 faixas et�rias: Infante (0/14 anos); Adulto (15/40); Idoso (40+). Os adultos tendem a prevalecer com o maior n�mero de alforrias. Todavia, nas d�cadas de 1840-60, as crian�as obt�m mais manumiss�es - quest�o tamb�m aberta � historiografia.[24]

No que se refere � metodologia empregada para o trabalho com alforria, n�o � suficiente trabalhar somente a partir das vari�veis apresentadas. As fontes e o contexto social antecedem o trabalho com as no��es de idade, sexo, cor, naturalidade, meio, ocupa��o, e as demais vari�veis.[25][9]

Referências

  1. Dicionário Priberam da Língua Portuguesa. «Alforria» 
  2. Karen Radner, Eleanor Robson, ed. (2011). The Oxford Handbook of Cuneiform Culture. [S.l.]: Oxford University Press. pp. 208–209. ISBN 978-0199557301 
  3. John Alan Halloran (2006). Sumerian Lexicon: A Dictionary Guide to the Ancient Sumerian Language. [S.l.]: David Brown Book Company. p. 19. ISBN 978-0-9786429-0-7 
  4. FLORENTINO, Manolo (2002). «Alforrias e etnicidade no Rio de Janeiro oitocentista: notas de pesquisa» (PDF). Topoi 
  5. Team, Almaany. «تعريف و معنى حرية بالعربي في معجم المعاني الجامع، المعجم الوسيط ،اللغة العربية المعاصر - معجم عربي عربي - صفحة 1». www.almaany.com (em inglês). Consultado em 11 de janeiro de 2018 
  6. FERREIRA, A. B. H. Novo dicionário da língua portuguesa. 2ª edição. Rio de Janeiro. Nova Fronteira. 1986. p. 83.
  7. FERREIRA, A. B. H. Novo dicionário da língua portuguesa. 2ª edição. Rio de Janeiro. Nova Fronteira. 1986. p. 1 084.
  8. PODER JUDICIÁRIO DO ESTADO DE SERGIPE. A alforria. Disponível em: http://www.tjse.jus.br/arquivojudiciario/index.php/exposicao-virtual/134-a-alforria
  9. a b c d ECHEVERRI, Adriana; FLORENTINO, Manolo; VALENCIA, Carlos Eduardo (2010). Impérios Ibérios em Comarcas Americanas. Rio de Janeiro: 7 Letras. pp. 85–101 
  10. Tannenbaum, Frank. El negro en las Americas: esclavo y ciudadano. Buenos Aires: Paidos 
  11. FINLEY, Moses (1991). Escravidão Antiga e Ideologia Moderna. Rio de Janeiro: Graal 
  12. LARA, Sílvia Hunold. «Biografia de Mahommah G. Baquaqua». Revista Brasileira de História: Página 276 
  13. CUNHA, Manuela Carneiro da (1985). Negros, estrangeiros: os escravos libertos e sua volta à África. [S.l.]: Brasiliense. pp. Página 34 
  14. a b FLORENTINO, Manolo (2002). «Alforrias e etnicidade no Rio de Janeiro oitocentista: notas de pesquisa». Topoi: 29 (Gráficos 5 e 5.1) 
  15. FLORENTINO, Manolo (2002). «Alforrias e etnicidade no Rio de Janeiro oitocentista: notas de pesquisa». Topoi: 24-25 (Gráficos 4 e 4.1) 
  16. FLORENTINO, Manolo (2002). «Alforrias e etnicidade no Rio de Janeiro oitocentista: notas de pesquisa». Topoi: 19 (Gráfico 2) 
  17. CUNHA, Manuela Carneiro da (1985). Negros, estrangeiros: os escravos libertos e sua volta à África. [S.l.]: Brasiliense. pp. Página 32 
  18. CUNHA, Manuela Carneiro da (1985). Negros, estrangeiros: os escravos libertos e sua volta à África. [S.l.]: Brasiliense. pp. Página 37 
  19. CUNHA, Manuela Carneiro da (1985). Negros, estrangeiros: os escravos libertos e sua volta à África. [S.l.]: Brasiliense. pp. Página 41 
  20. CUNHA, Manuela Carneiro da (1985). Negros, estrangeiros: os escravos libertos e sua volta à África. [S.l.]: Brasiliense. pp. Página 42 
  21. CUNHA, Manuela Carneiro da (1985). Negros, estrangeiros: os escravos libertos e sua volta à África. [S.l.]: Brasiliense. pp. Página 41–43 (Tabela II) 
  22. CUNHA, Manuela Carneiro da (1985). Negros, estrangeiros: o escravo liberto e sua volta à África. [S.l.]: Brasiliense. pp. Página 22 e 42 
  23. FLORENTINO, Manolo (2002). «Alforrias e etnicidade no Rio de Janeiro oitocentista: notas de pesquisa». Topoi: 23 (Gráfico 3) 
  24. Livros de registros de notas do primeiro, segundo e terceiro ofícios do Rio de Janeiro — 1840/1859, Arquivo Nacional (RJ).
  25. FLORENTINO, Manolo (2002). «Alforrias e etnicidade no Rio de Janeiro oitocentista: notas de pesquisa». Topoi: 31-33