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Filosofia do eu

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A filosofia do eu ou do si/self, em referência ao eu essencial ou si mesmo, define, entre outras coisas, as condições de identidade que tornam um sujeito da experiência distinto de todos os outros. As discussões contemporâneas sobre a natureza do self não são, portanto, discussões sobre a natureza da personalidade ou da identidade pessoal. O eu às vezes é entendido como um ser unificado essencialmente conectado à consciência, autopercepção e agência (ou, pelo menos, com a faculdade da escolha racional). Várias teorias sobre a natureza metafísica do eu foram propostas. Entre elas, a natureza metafísica do eu foi proposta como sendo a de uma substância imaterial.

Defini��es do eu

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A maioria das defini��es filos�ficas do si pr�prio - por Descartes, Locke, Hume e William James - s�o expressas na primeira pessoa.[1] Uma defini��o de terceira pessoa n�o se refere a qualia mental espec�fica, mas busca objetividade e operacionalismo.

Para outra pessoa, o eu de um indiv�duo � exibido na conduta e no discurso desse indiv�duo. Portanto, as inten��es de outro indiv�duo s� podem ser inferidas a partir de algo que emana desse indiv�duo. As caracter�sticas particulares do eu determinam sua identidade.

Conceitos de eu

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O eu nas tradi��es orientais

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Na espiritualidade, e especialmente nas tradi��es n�o-duais, m�sticas e orientais meditativas, o ser humano � frequentemente concebido como estando na ilus�o da exist�ncia individual e da separa��o de outros aspectos da cria��o. Esse "senso de autoria" ou senso de exist�ncia individual � a parte que acredita que � o ser humano e acredita que deve lutar por si mesma no mundo; �, em �ltima an�lise, despercebido e inconsciente de sua pr�pria natureza verdadeira. O ego � frequentemente associado � mente e ao sentido do tempo, que pensa compulsivamente para ter certeza de sua exist�ncia futura, em vez de simplesmente conhecer o seu pr�prio eu e o presente.

O objetivo espiritual de muitas tradi��es envolve a dissolu��o do ego, em contraste ao Self essencial,[2] permitindo que o autoconhecimento da pr�pria natureza verdadeira se torne experiente e atuado no mundo. Isso � conhecido como ilumina��o, nirvana, presen�a e "aqui e agora".

Autoconhecimento

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Ambas civiliza��es ocidental e oriental se ocuparam com o autoconhecimento e ressaltaram sua import�ncia, citando particularmente a combina��o paradoxal de disponibilidade imediata e obscuridade profunda envolvida em sua busca.[3] Para S�crates, o objetivo da filosofia era "conhecer a si mesmo". Lao Tzu, em seu Tao Te Ching, diz: "Conhecer os outros � sabedoria. Conhecer o eu � ilumina��o. Dominar os outros exige for�a. Dominar o eu exige for�a".[4] O caso � o mesmo para os videntes dos Upanishads, que sustentavam que o conhecimento real �ltimo envolve uma compreens�o da ess�ncia do eu e da natureza de Deus.[5] Adi Shankaracharya, em seu coment�rio sobre o Bhagavad Gita, diz que "somente o autoconhecimento erradica a mis�ria".[6] "O autoconhecimento por si s� � o meio para a maior felicidade".[6] "A perfei��o absoluta � a consuma��o do autoconhecimento."[6]

Uma teoria sobre o autoconhecimento descreve o conceito como a capacidade de detectar que as sensa��es, pensamentos, estados mentais e atitudes s�o suas.[7] Est� ligado a outras concep��es, como autoconsci�ncia e autoconceito. A teoria racionalista, inspirada por Immanuel Kant, tamb�m afirma que nossa capacidade de alcan�ar o autoconhecimento atrav�s da reflex�o racional deriva em parte do fato de nos vermos como agentes racionais. Esta escola rejeita que o autoconhecimento seja meramente derivado da observa��o, pois reconhece o sujeito como aut�nomo devido � sua capacidade como agente de moldar seus pr�prios estados.[8]

O eu como uma atividade

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Arist�teles, seguindo Plat�o, definiu a alma como a ess�ncia central de um ser vivo, e, apesar de afirmar que ela n�o existia separada do corpo,[9] considerava a sua parte denominada "intelecto" como tendo caracter�stica imortal e perp�tua,[10][11] em contraste �s suas fun��es vegetativa/nutritiva e perceptiva dependentes do organismo. Em sua teoria das causas e de ato e pot�ncia, Arist�teles enfatiza os seres em rela��o � manifesta��o em ato deles, e por sua vez a alma era tamb�m definida por seus efeitos atuais. Por exemplo, se uma faca tivesse uma alma, o ato de cortar seria considerado essa alma, porque "cortar" faz parte da ess�ncia do que � ser uma faca. Mais precisamente, a alma � a "primeira atividade" de um corpo vivo. Este � um estado, ou um potencial para atividade real ou 'segunda'. "O machado tem uma vantagem para cortar" era, para Arist�teles, an�logo a "os seres humanos t�m corpos para atividade racional", e o potencial para atividade racional constitu�a, assim, a ess�ncia de uma alma humana. Ele afirma: "A alma � uma realidade ou ess�ncia formul�vel de algo que possui uma potencialidade de ser animada", e tamb�m "Quando a mente � libertada de suas condi��es atuais, ela aparece exatamente como � e nada mais: s� isso por si � imortal e eterno".[12] Arist�teles usou seu conceito de alma em muitas de suas obras; sua obra principal sobre o assunto � De Anima (Sobre a Alma).[13][14]

Arist�teles tamb�m acreditava que havia quatro se��es da alma: as partes calculativa e cient�fica no lado racional usadas para tomar decis�es, e as partes desiderativa e vegetativa no lado irracional respons�vel por identificar nossas necessidades. Uma divis�o das fun��es e atividades da alma encontra-se tamb�m na teoria tripartite de Plat�o. A problem�tica de um em muitos � tamb�m lembrada por Arist�teles, no entanto:

Se ent�o a alma � de sua pr�pria natureza divis�vel, o que a mant�m unida? N�o � o corpo, certamente: muito pelo contr�rio, parece ser verdade que a alma mant�m o corpo unido; pois quando parte, o corpo expira e se decomp�e. Se h� algo que o torna �nico, esse outro � a alma. Algu�m ent�o teria que perguntar, com rela��o a esse outro, se � uma ou v�rias partes. Se � um, por que n�o cham�-lo de alma imediatamente? Mas se � divis�vel, a raz�o exige novamente, o que � que mant�m isso unido? E assim por diante ''ad infinitum''.[15]

Self independente dos sentidos

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Enquanto ele estava preso em um castelo, Avicena escreveu seu famoso experimento mental "Homem Flutuante" para demonstrar a autopercep��o humana e a substancialidade da alma. Seu experimento mental diz a seus leitores que se imaginem suspensos no ar, isolados de todas as sensa��es, o que inclui nenhum contato sensorial com o pr�prio corpo. Ele argumenta que, nesse cen�rio, ainda se teria autoconsci�ncia. Assim, ele conclui que a ideia do eu n�o � logicamente dependente de qualquer coisa f�sica, e que a alma n�o deve ser vista em termos relativos, mas como algo dado principal, uma subst�ncia. Mais tarde, esse argumento foi refinado e simplificado por Ren� Descartes em termos epist�micos quando afirmou: "Posso abstrair da suposi��o de todas as coisas externas, mas n�o da suposi��o de minha pr�pria consci�ncia".

Teoria do eu como feixe

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David Hume apontou que tendemos a pensar que somos a mesma pessoa que �ramos h� cinco anos. Embora tenhamos mudado em muitos aspectos, a mesma pessoa parece presente como estava presente na �poca. Podemos come�ar a pensar sobre quais recursos podem ser alterados sem alterar o eu subjacente. Hume, no entanto, nega que exista uma distin��o entre as v�rias caracter�sticas de uma pessoa e o eu misterioso que supostamente apresenta essas caracter�sticas. Quando come�amos a examinar, "nunca estamos intimamente conscientes de nada al�m de uma percep��o espec�fica; o homem � um feixe (bundle) ou cole��o de percep��es diferentes que se sucedem com uma rapidez inconceb�vel e est�o em fluxo e movimento perp�tuos".[16]

� claro que, no curso de nosso pensamento, e na constante revolu��o de nossas ideias, nossa imagina��o passa facilmente de uma ideia para outra que se assemelha a ela, e que essa qualidade por si s� �, para a fantasia, um v�nculo e associa��o suficientes. � igualmente evidente que, como os sentidos, ao mudar seus objetos, s�o necess�rios para alter�-los regularmente, e tom�-los conforme eles permanecem cont�guos, a imagina��o deve, por muito tempo, adquirir o mesmo m�todo de pensamento e seguir as partes de espa�o e tempo na concep��o de seus objetos."[17]

Na vis�o de Hume, essas percep��es n�o pertencem a nada. Em vez disso, Hume compara a alma a uma comunidade, que mant�m sua identidade n�o em virtude de alguma subst�ncia essencial duradoura, mas por ser composta por muitos elementos diferentes, relacionados e, ainda assim, em constante mudan�a. A quest�o da identidade pessoal passa a ser uma quest�o de caracterizar a coes�o solta da experi�ncia pessoal. (Observe que, no ap�ndice do Tratado, Hume disse misteriosamente que estava insatisfeito com seu relato do si, mas nunca voltou ao assunto.)

O paradoxo do navio de Teseu pode ser usado como uma analogia do eu como um feixe de partes em fluxo.

A posi��o de Hume � conhecida em ingl�s como "bundle theory", muito semelhante �s teorias e debates dos budistas indianos sobre o self, que geralmente consideram uma teoria de feixe para descrever os fen�menos da mente agrupados em agregados (skandhas), tais como sensopercep��es, discrimina��o intelectual (saṃjñā), emoções e volição. Desde o início da filosofia budista, várias escolas de interpretação assumiram que um self não pode ser identificado com os agregados transitórios, pois eles são vazios de eu, mas algumas tradições questionaram além do mais se poderia haver um solo de fundo imutável que defina uma identidade individual real e permanente e que sustente os fenômenos impermanentes; conceitos como natureza de Buda são encontrados na linhagem Maaiana, e de uma realidade última na tradição dzogchen, por exemplo em Dolpopa[18] e Longchenpa.[19] Embora os budistas critiquem o ātman imutável do hinduísmo, algumas escolas budistas problematizaram a noção de uma personalidade individual; mesmo entre as primeiras, como a visão do Pudgala, ela foi levantada implicitamente em perguntas como "quem é o portador do feixe?", "o que carrega os agregados?", "o que transmigra de um renascimento para outro?" ou "qual é o sujeito do auto-aperfeiçoamento e da iluminação?".[20]

Ver artigo principal: Anatta

O Buda, em particular, atacou todas as tentativas de conceber um eu fixo, enquanto ao mesmo tempo afirmava que sustentar a visão de que "eu não tenho eu" também está errado. Este é um exemplo do caminho do meio traçado pelo Buda e pela escola de budismo Madhyamaka. Essa ausência de uma definição do self é direcionada para evitar o apego ao "eu", buscar-se a realidade e alcançar o desapego,[21] e é encontrada em muitas passagens dos mais antigos sutras de Buda, registrados no Cânone Páli, como este:

"Bhikkhus, a forma não é o eu ('é anatta', não-self). Se a forma fosse, então essa forma não levaria à aflição, e poder-se-ia tomá-la assim: 'Seja minha forma assim, que minha forma não seja assim.' E como a forma não é o eu, leva à aflição, e ninguém pode tê-la assim: 'Seja minha forma assim, que minha forma não seja assim.'... Bhikkhus, o sentimento não é o eu... Bhikkhus, a percepção não é o eu... Bhikkhus, as determinações não são o eu ... Bhikkhus, a consciência (vijñāna) não é o eu... é a forma permanente ou impermanente?..."[22]

O eu como centro de gravidade narrativo

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Daniel Dennett tem uma teoria deflacionária do "eu". Eus não são fisicamente detectáveis. Em vez disso, são uma espécie de ficção conveniente, como um centro de gravidade, que é conveniente como uma maneira de resolver problemas de física, embora não precisem corresponder a nada tangível - o centro de gravidade de um aro é um ponto no ar. As pessoas constantemente se contam histórias para dar sentido ao seu mundo, e aparecem nas histórias como personagem, e esse personagem conveniente, mas fictício, seria o eu.[23][24]

O eu como uma construção sintática indispensável, não uma entidade

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Aaron Sloman propôs que palavras como "eu", "eus", "ela mesma", "ela mesma", "isto mesmo", "eles mesmos", "eu mesmo" etc. não se referem a um tipo especial de entidade, mas fornecem mecanismos sintáticos poderosos para construir enunciados que se referem repetidamente à mesma coisa sem repetição tediosa e obscura de nomes ou outras expressões referentes.[25]

Referências

  1. Gaynesford, M. de I: The Meaning of the First Person Term, Oxford, Oxford University Press, 2006.
  2. Cottingham, Jenny. From the self to the Self: an exploration of the process of Self-realisation in the context of Indian psychology. Auckland, New Zealand: Auckland University of Technology. 2015.
  3. Lambert, Richard. Self Knowledge in Thomas Aquinas: The Angelic Doctor on the Soul's Knowledge of Itself. [S.l.: s.n.] ISBN 9781420889659 
  4. Laozi, Lao Tsu. Tao Te Ching. [S.l.: s.n.] ISBN 978-0-679-72434-6 
  5. Mohapatra, Amulya; Mohapatra, Bijaya. Hinduism: Analytical Study. [S.l.: s.n.] ISBN 8170993881 
  6. a b c Alladi, Mahadeva Sastry. The Bhagavad Gita with the commentary of Sri Sankaracharya. [S.l.: s.n.] 
  7. Gertler, Brie. Self-Knowledge. [S.l.: s.n.] ISBN 0203835670 
  8. Gorgione, Luca. Kant and the Problem of Self-Knowledge. [S.l.: s.n.] ISBN 9781138385467 
  9. De Anima 414a20ff
  10. "Pois enquanto a faculdade sensível não é encontrada à parte do corpo, o intelecto é separado." Aristóteles, De Anima III, 4, 429b3
  11. De Anima III.4
  12. De Anima, III, 5, 430a22
  13. Shields, Christopher (2016). Zalta, Edward N., ed. «Aristotle's Psychology». Metaphysics Research Lab, Stanford University 
  14. Olshewsky, Thomas M. (1976). «On the Relations of Soul to Body in Plato and Aristotle» (PDF). Journal of the History of Philosophy. 14 (4) 
  15. De Anima I, 5
  16. Hume, David. A Treatise of Human Nature. [S.l.: s.n.]  I, IV, vi
  17. Hume, David. A Treatise of Human Nature. [S.l.: s.n.]  4.1, 2
  18. Schaeffer, Kurtis R.; Kapstein, Matthew T.; Tuttle, Gray (2013-03-26). Sources of Tibetan Tradition. Columbia University Press. ISBN 9780231509787. p. 410
  19. Germano, David Francis. Poetic thought, the intelligent Universe, and the mystery of self: The Tantric synthesis of rDzogs Chen in fourteenth century Tibet. Madison: The University of Wisconsin. 1992.
  20. Priestley, Leonard C. D. C. (1999) Pudgalavada Buddhism: The Reality of the Indeterminate Self. South Asian Studies Papers, 12, monograph 1. University of Toronto: Centre for South Asian Studies.
  21. Shiah, Yung-Jong (4 de fevereiro de 2016). «From Self to Nonself: The Nonself Theory». Frontiers in Psychology. 7. ISSN 1664-1078. PMC 4740732Acessível livremente. PMID 26869984. doi:10.3389/fpsyg.2016.00124 
  22. Anatta-lakkhana Sutta (Pali Canon). Translation by Ñanamoli Thera (1993).
  23. «The Self as a Center of Narrative Gravity» 
  24. «The Self as a Centre of Narrative Gravity» 
  25. «"The Self" -- A bogus concept? Yes and no!»